O sonho, a espiritualidade e a política.
Pode soar
estranho para vocês que estão aqui lendo esse artigo e talvez esperem por algo
um pouco diferente, prometo que a teoria junguiana se encontra logo ali na
frente, mas preciso começar contando uma experiência pessoal.
Durante
meu mestrado tive o imenso prazer de ter conhecido algumas pessoas indígenas e
ouvido muitas de suas histórias, e foi uma delas que me inspirou essa escrita.
Durante a pandemia de Covid-19, quando ainda não existia vacina, algumas
pessoas indígenas relataram terem sonhado, ou recebido como alguma outra forma
de inspiração divina, preparados de plantas para aliviar os sintomas. Esses relatos
podem ser encontrados em vídeos no YouTube e dizem respeito a etnias espalhadas
pelo Brasil, não fora apenas em um local geográfico. A última informação é um
ponto relevante pois com a extensão do continente brasileiro e a diversidade de
climas e biomas fazem com que seja muito difícil ter exatamente as mesmas
plantas em todos os lugares.
E foi com
uma dessas histórias que me deparei, aliás, não só com a história, conheci as
pessoas envolvidas. A sonhadora é uma senhora indígena idosa, pequena, de
cabelos brancos, que após recado em seu sonho, fez um preparado de ervas e deu
para enfermos tomarem. Essas pessoas relatam realmente terem os sintomas da
Covid-19 amenizados. Antes que vocês perguntem “que ervas eram essas?”
respondo: ela não revela, a receita é segredo. E, até onde estudei, as outras
pessoas que sonharam com esses preparados também não. É a partir daqui que
começo com a teoria, mas confesso que me encanta mais a parte onde tudo parece
um conto.
Não é
incrível pensar que um recado tão importante como um remédio para amenizar
sintomas de uma doença que ceifava milhares de vida desenfreadamente possa ter
vindo por um sonho? É sabido que o tema “sonhos” é fundamental na obra de Jung,
porém é importante lembrar que nem todos os sonhos tem a mesma relevância, alguns
são comuns, banais e que por esse motivo são esquecidos facilmente, e outros
são muito significativos, “ficam gravados muitas vezes na memória por toda a
vida e constituem, não raramente, a joia mais preciosa do tesouro das
experiências psíquicas vividas” (p.246). Sobre esses sonhos “grandes” Jung diz:
Eles
apresentam, com efeito, uma conformação simbólica que encontro também na história
do espírito humano. Fato notável é que o sonhador sequer tem noção de que
existam tais paralelos. Esta particularidade está presente também nos sonhos do
processo de individuação. Estes sonhos contêm os chamados motivos
mitológicos ou mitologemas, que chamei de arquétipos. Este termo designa
formas especificas e grupos de imagens que se encontram, sob formas
coincidentes, não só em todas as épocas e em todas as latitudes, mas também nos
sonhos individuais, nas fantasias, nas visões e nas ideias delirantes. Tanto
sua aparição frequente nos casos individuais como sua ubiquidade étnica provam
que a alma humana é singular, subjetiva e pessoal apenas por um lado, mas
coletiva e objetiva quanto ao mais.
É por
isto que falamos, de um lado, de um inconsciente pessoal e, do outro, de um
inconsciente coletivo. Este último representa uma camada mais profunda do que o
inconsciente pessoal, que está próximo da consciência. Os “grandes” sonhos,
isto é, os sonhos “importantes”, provêm desta camada mais profunda. Além da
impressão subjetiva que eles causam em nós, sua importância se revela já na
própria conformação plástica, muitas vezes rica de força poética e de beleza. (JUNG,
2013. p.246)
Aqui
gostaria de deixar um questionamento para pensarmos a respeito: nós, que
vivemos nas cidades, nesse modelo de vida dito como “moderno” voltado a
produtividade, lucratividade e tão individualista, conseguiríamos em algum
momento ter uma ligação tão profunda com o inconsciente e com o coletivo de
pessoas que nos cerca a ponto de sonhar com soluções para amenizar problemas,
tal como o vírus da Covid-19? Eu, particularmente, acredito que não, mas
sintam-se à vontade para discordar de mim.
Em todos os relatos que tive acesso, os sonhos com os preparados de ervas eram sempre atribuídos a revelações de divindades, ou seja, a espiritualidade. Essas divindades podem ser vistas como figuras arquetípicas, tal qual as figuras comuns que conhecemos hoje: Maria, Jesus, Afrodite, Shiva, entre tantas outras. E, como já dissemos, arquétipos estão em uma esfera muito maior que um indivíduo. Geralmente quem recebe essas mensagens são pessoas que possuem fortes ligações espirituais, essas mesmas pessoas costumam estar em posições importantes na comunidade, como cargos de liderança espiritual ou conselheiro, por exemplo. Em resumo, a espiritualidade é vivida de forma intrínseca.
E
enquanto falo isso, sei que é difícil para nós pessoas da cidade, da
“modernidade”, imaginarmos algo diferente das nossas vivencias, especialmente
por essas parecerem universais: “acontece igual em vários lugares do mundo”,
logo supomos que só essa forma existe ou é a “certa”. Para mim, antes das
vivencias do mestrado, também era. Mas acreditem, ainda (r)existem outras
formas, mesmo que as duras penas, nós apenas não conseguimos imagina-las por
uma limitação do nosso modo de viver, que tende a desqualificar tudo que não se
enquadra.
Mas,
voltando ao sonho, ele trouxe imagens primordiais coletivas a sonhadora, como
as divindades e as plantas, imagens essas relacionadas que lhe permitiram fazer
o preparado de ervas para amenizar os sintomas da Covid-19. Tais imagens
vinculam-se ao espirito, que por sua vez vincula-se a religião, que se liga ao
símbolo e o mito. Como Jung pontua:
Nossa concepção em todas as coisas
problemáticas é altamente influenciada por certas ideias coletivas que
configuram nossa atmosfera espiritual, raras vezes de forma consciente e, na
maioria dos casos, de forma inconsciente. Essas ideias coletivas estão em
íntima relação com a concepção de vida ou cosmovisão dos séculos ou milênios
passados. Se esta dependência é consciente ou inconsciente não vem ao caso,
pois já somos influenciados por essas ideias através do próprio ar que
respiramos. Essas ideias coletivas têm sempre caráter religioso e uma ideia
filosófica só chega a ter caráter coletivo quando exprime uma imagem
primordial, isto é, uma imagem coletiva primitiva. O caráter religioso dessas
ideias provém do fato de exprimirem realidades do inconsciente coletivo e
permitirem, com isso, a liberação de energias latentes do inconsciente. (2013 p.
233)
O que
quero apontar é que os sonhos que trouxeram essas soluções possuíam raízes coletivas.
No livro “A serpente cósmica, o DNA e a origem do saber” de Jeremy Narby, o
autor faz extensas pesquisas a respeito de experiencias relacionadas a povos
que de alguma forma se “comunicam” com plantas e delas provem conhecimentos e
saberes. Trata também sobre os conhecimentos ancestrais, de épocas em que não existia
aparatos tecnológicos, e sobre como esses conhecimentos chegaram até a
consciência. Ou seja, desde muito tempo atrás alguns povos relatam sonhos
“grandes” ou “importantes”. Para eles, não existe novidade alguma em ter ajuda divina/espiritual
através do sonho. A espiritualidade e a fé são tão intrínsecas que fatos assim
são, em partes, corriqueiros. Jung pontua que:
Essas imagens (primordiais do inconsciente) são
até mesmo fatores que contrabalançam e compensam os problemas que a realidade
da vida nos coloca. Não é de admirar, pois as imagens são o sedimento da
experiência milenar na luta pela adaptação e pela existência. Todas as grandes
experiências de vida e todas as maiores tensões tocam, portanto, no tesouro
dessas imagens e as transformam em fenômeno íntimo e que, como tal, se torna
consciente se houver autorreflexão e força de compreensão suficientes para que
o indivíduo também pense no que está vivenciando e não apenas o faça, isto é –
sem o saber –, viva concretamente o mito e o símbolo. (2013, p. 233)
Quando
aponto sobre a sequência de ter o sonho, ouvi-lo, colher as ervas, prepara-lo,
toma-lo, ou seja, concretiza-lo, me faz relacionar, consequentemente, ao viver,
literalmente, o mito e o símbolo que Jung sugere. Diante disso, me questiono
quantos de nós ainda conseguimos faze-lo. E esse questionamento faz com que um
trecho onde Jung afirma que poucos de nós realizamos essa façanha, ganhe forma
concreta, pautada em uma prática do mundo material, dentro de minha
perspectiva.
A pessoa humana precisa
de vida simbólica. E precisa com urgência. Nós só vivemos coisas banais,
comuns, racionais ou irracionais – que naturalmente também estão dentro do
campo de interesse do racionalismo, caso contrário não poderíamos chamá-las
irracionais. Mas não temos vida simbólica. Onde vivemos simbolicamente? Em
parte alguma, exceto onde participamos no ritual da vida. Mas quem de muitos de
nós participa do ritual da vida? Muito poucos. (JUNG, 2013 p. 291)
Seguindo
o trecho, ainda pontua que esses ritos supostamente estariam presentes nos
simbolismos das religiões, porém aponta e critica que em muitas crenças os
mesmos foram racionalizados. Com esse relato, espero mostrar que, talvez, nem
todas as formas de viver o espiritual estejam envoltas em racionalismo e ainda
existe, ao menos, uma possibilidade de ser diferente.
A partir daqui vou fazer um contraponto e quero deixar claro que não estou me referindo ao contexto ou aos povos que citei anteriormente. Mas preciso fazer uns próximos parágrafos de ressaltas...
É importante lembrar que em
outros contextos religiosos também é relatado o uso de sonhos como forma de
apontar caminhos. Apenas a título de exemplo, sem me aprofundar: na bíblia
cristã reis tiveram sonhos interpretados por pessoas e tais sonhos diziam a
respeito de problemáticas futuras enfrentadas pelo reinado; no islamismo também
é dito sobre sonhos proféticos para guiar um povo; em religiões pagãs a atenção
dada aos sonhos é enorme. O que há em comum é o sonho sendo usado
ligado a espiritualidade e também a política, afinal, se falamos de decisões
que mudaram o destino e/ou o modo de viver de um povo, falamos de política.
O fato é
que, no final das contas, religião e política nunca estiveram separadas. Em
nenhum lugar, sociedade ou época, e esse fato também gera um complexo paradoxo.
Agora ampliando nossa visão para um contexto histórico e englobando diversos
povos, atrocidades foram e ainda são cometidas em nome de religiões e política. Visto que
ainda hoje, falando de democracia, elegemos ou não pessoas baseadas em
conceitos morais fundamentados em preceitos religiosos. E, da mesma forma,
ainda se usa religião para justificar atos bárbaros contra a vida, como
apedrejamentos, torturas, atentados terroristas, guerras... a lista é grande.
O ponto que quero chegar é: acredito que nem ao menos deveríamos cogitar que esses conceitos
possam ser vistos de forma isolada. Mesmo quando deveriam estar, imprescindivelmente. Uma
vez que as religiões, independente de qual seja, tangenciam muitos conceitos
éticos e morais que aprendemos e usamos, mesmo quando não conhecemos suas
raízes, por exemplo os debates sobre a legalização ou não do aborto (e de forma
alguma pretendo discutir aqui, apenas quis citar um exemplo polemico). E eu, enquanto autora desse texto, de forma alguma apoio ou concordo com decisões políticas pautadas em conceitos religiosos, inclusive acho perigoso. Fim da ressalta.
O que quero propor para pensarmos com esse relato é que, nas minhas percepções, da forma como nós, sociedade “moderna” vivemos, talvez não haja mesmo o espaço para viver o símbolo, como Jung pontua. Mas, se olharmos em volta e aprendermos com outras sociedades, possa ser possível aprender. Como você em sua vida pessoal tem vivido sua vida simbólica?
Referencias
JUNG, Carl Gustav. A
natureza da psique. 10 ed. – Petrópolis, Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. A vida
simbólica: escritos diversos. 7 ed. – Petrópolis, Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Tipos
psicológicos. 7 ed. – Petrópolis, Vozes, 2013.
NARBY, Jeremy. A serpente
cósmica: o DNA e as origens do saber. Rio de Janeiro, Dantes, 2018.
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